Distopias - parte 2
Caro Leitor,
O livro "The Road" e o filme com o mesmo nome é mais um exemplo de uma bela distopia. No meio da destruição total, o sorriso pode existir. O amor pode existir.
Deixo-lhe as minhas impressões do livro e filme transcritas nesta carta antiga cuja inserção neste capítulo de distopias julgo ser relevante.
......
"A capa do livro emprestado num final de verão – referência a uma grande amiga – lembra o filme “Dead End” de 2003. Se não viram, paciência. Talvez não valha já a pena vê-lo, mas, na altura, foi um filme que me surpreendeu, surpresa presa a um momento específico, a uma primeira visualização que, como todas as primeiras visualizações e primeiras impressões, tem os seus encantos (uh, isto soa-me familiar, como se já tivesse escrito algo similar).
Imaginem uma estrada no meio de um bosque, qual pinhal de Leiria – nova referência à grande amiga. Uma estrada fotografada à noite. Uma estrada em direção à escuridão. Uma estrada fantasmagórica, retratada numa fotografia em tons de cinza azulado, como se resultante de um qualquer filtro fotográfico cujo nome desconheço.
Não era uma fã de Cormac McCarthy. Vira apenas duas adaptações ao cinema de obras suas – The Road e No Country For Old Men. Adorei a primeira e quando vi este livro, timidamente ensardinhado entre os demais, resolvi trazê-lo – depois de um pedido formal, é claro.
Logo de início, somos transportados para um bosque, escuro e frio. Aquece-nos o calor moderado que imana da relação do pai e do filho. Manter-nos-á quentes até ao final da história. É esta relação que conduz o filme. Num mundo onde tudo o resto que conhecíamos deixa de existir ou de fazer sentido, apenas sobrevivem as relações próximas. Sobrevivem porque se adaptaram. Deixaram para trás os embelezamentos de uma sociedade consumista. Subsistiu o mais puro, o mais humano dos sentimentos.
Rapidamente nos apercebemos da santa trindade que percorre grande parte do filme. A unidade dos três que resiste, como eles também resistem, – pai, filho e carrinho de compras. Inseparavelmente ligados por um fio invisível que ainda que se parta, - “and break it will”- não será esquecido.
Adoro distopias. Adoro. Adoro atuações em que os gestos, olhares, silêncios falam mais do que mil palavras. Adoro. Adoro a fealdade do mundo criado por McCarthy: a sensação de que caminhámos sozinhos por caminhos inóspitos em busca de algo que nunca atingiremos; a destruição lenta e cadente de um mundo criado por nós e, provavelmente, destruído por nós. Adoro a linguagem parca do diálogo entre as figuras principais. Adoro a “performance” de Viggo Mortensen, ator cuja primeira atuação presenciada por mim (A Perfect Murder – remake) em nada fazia prever o percurso grandioso do ator. Adoro o sentimento que nos abala tanto na leitura como na visualização do filme. Adoro.
The road is lengthy and sinuous- to where it leads no one knows.
The sky is dull and ash-grey and the cold is bone chilling and wet.
Life is a distant and forgotten word. Loneliness rules in this god-forsaken world. Father and son march on it day in day out heading south, heading to the ocean.
One of them carries the responsibility for survival. The other one carries the fire."
25 outubro 2014