O segredo está nos olhos
"el tipo puede cambiar de todo: de cara, de casa, de familia, de novia, de religión, de dios, pero hai una cosa que no puede cambiar, Benjamín. No puede cambiar de passion."
Caro Leitor,
há muito tempo que não tinha convites para uma ante-estreia. Na semana passada, como se de um milagre natalício se tratasse, surge um convite duplo para a ante-estreia de Secret In Their Eyes, e eu, como adoro cinema, e a cavalo dado não se olha o dente, lá fui depois de um dia cheio de trabalho.
Quando recebi o convite, associei imediatamente o título a um outro filme argentino que já vira há uns anos: El Secreto De Sus Ojos (não estava errada em fazer tal associação). Lembro-me de ter gostado da duplicidade do título e de ter gostado do filme, mas confesso que já não me lembrava da trama.
Fui ver o filme americano na expetativa de me ir lembrando do original. Nada! Apesar da minha memória já não ser o que era - deve ser da idade - a culpa não foi minha. A explicação surge mais abaixo.
Como não me lembrava do original, a minha mente limitou-se a ver o filme e a tentar descodificar os elementos do thriller. O filme não é impressionante e as atuações dos atores - Nicole Kidman, Julia Roberts e Chiwetel Ejiofor não são brilhantes talvez porque o texto não os deixa. No entanto, como já não me lembrava do filme original, fiquei surpreendida pelo final.
Depois de ver o filme e da menção do filme original nos créditos, não pude conter a minha curiosidade e resolvi revisitar o filme original. E as comparações seriam inevitáveis. A trama é muito parecida, mas mudam-se as personagens, o elo que as liga,e outros detalhes que tal.
O título em inglês não proporciona a duplicidade do título em castelhano, que aponta duplamente para os olhos dele/dela e para os deles, enquanto que a versão inglesa aponta logo para o plural, perdendo-se assim um pouco do mistério.
O filme original explora mais o título, há mais riqueza no texto e mais profundidade nas personagens.
A relação entre as duas personagens principais (Claire e Ray - filme americano; Irene e Esposito - filme original) é mais mais aprofundada no original e as relações destes com os outros também - salienta-se a relação entre os dois colegas de trabalho masculinos. A relação amorosa entre as personagens principais parece ser mais impossível de concretizar no presente no filme original, e por isso a surpresa final.
No filme original, a obsessão do assassínio pela vítima espelha-se melhor na obsessão, ainda que não criminosa, de Esposito por Irene (filme americano Ray por Claire). E na abordagem de todas as obsessões, o filme original prima pela poesia e pela mestria - é mais interessante retratar a obsessão de quem espera por alguém sem saber se esse alguém irá algum dia passar por lá numa estação de comboios do que num bar repleto de fãs de basebol.
O cómico no filme original é mais aprofundado, mais verosímil.
Há semelhanças entre os dois filmes e guiões, mas também diferenças que revelam escolhas interessantes ainda que nem sempre acertadas. Por exemplo, que a mãe do presumível assassino, velhota do apartamento onde fazem buscas, desse lugar, na versão americana, à namorada striper do presumível assassino seria de esperar. Que as cartas incriminatórias dessem lugar a uma banda desenhada criada pelo presumível culpado também, afinal já ninguém escreve. Que a obsessão de um marido pela mulher desse lugar à obsessão de uma mãe pela filha, já não seria tanto de esperar. E foi neste último apontamento que o remake pretendeu inovar. Tirando esta pequena inovação e a atuação de Kidman quando confronta o presumível assassino que comparando com a original é melhor, o filme americano não se equipara ao original. Esta inovação não traz um novo twist à história - aliás é mais difícil chegar ao twist no original, uma vez que o marido é uma personagem acessória - inicialmente. Ela confere ao filme um elemento previsível - alguém acha que a Julia entra num filme para ser uma mera presença pontual?
Vá ao cinema ver Secret In Their Eyes, mas não deixe de ver, se conseguir, El Secreto De Sus Ojos. Vale a pena ver as duas versões para estabelecer comparações e daí redigir conclusões. Eu gosto do original, mas devo dizer que ter visto o remake deixou-me ver o filme original com outros olhos. Apercebi-me mais das obsessões.
Afinal ,o segredo também está nos olhos de quem vê o filme. Espero que o relato do que os meus olhos viram não tenha sido demasiado revelador para quem vá ainda ver o(s) filme(s).